domingo, agosto 15

Os Filhos da paixão, de Pedro Tierra

Nascemos num campo de futebol

Haverá berço melhor para dar á luz uma estrela?
Aprendemos que os donos do país só nos ouviam
quando cessava o rumor da última máquina...
Quando cantava o arame cortado da última cerca...
Carregávamos no peito, cada um, batalhas incontáveis.


Somos a perigosa memória das lutas
Projetamos a perigosa imagem do sonho
Nada causa mais horror à ordem
do que homens e mulheres que sonham.


Nós sonhamos. E organizamos o sonho.
Nascemos negros, nordestinos, nisseis, índios,
mulheres, mulatas, meninas de todas as cores,
filhos, netos de italianos, alemães, árabes, judeus,
portugueses, espanhóis, poloneses, tantos...

Nascemos assim desiguais, como todos os sonhos humanos.
Fomos batizados na pia, na água dos rios, nos terreiros
Fomos, ao nascer, condenados
a amar a diferença.
A amar os diferentes.


Viemos da margem.
Somos a anti-sinfonia
que estorna da estreita pautada melodia.

Não cabemos dentro da moldura...
Somos dilacerados como todos os filhos da paixão.
Briguentos. Desaforados. Unidos. Livres:
como meninos de rua.

Quando o inimigo não fustiga,
inventamos nossas próprias guerras.
Desenvolvemos um talento prodigioso para elas...
Com nossas mãos, sonhos, desavenças,

compomos um rosto de peão,
uma voz rouca de peão,
o desassombro dos peões
para oferecer aos país,
para disputar o país.


Por sua boca dissemos, na fábrica, nos estádios, nas praças
que este país não tem mais donos.


...A vida, não. A vida não falta.
E não há nada mais revolucionário que a vida.
Fixa suas próprias regras. Marca a hora
e se opõe diante de nós, incontornável

Os filhos da margem têm os olhos postos sobre nós.
Eles sabem, nós sabemos que a vida
não concederá uma terceira oportunidade.


Hoje, temos uma cara. Uma voz. Bandeiras.
Temos sonhos organizados.
Queremos um país onde não se matem as crianças
que escaparam do frio, da fome, da cola de sapateiro.


Onde os filhos da margem tenham direito à terra,
ao trabalho, ao pão, ao canto, à dança,
às histórias que povoam nossa imaginação,
às raízes da nossa alegria.


Aprendemos que a construção do Brasil
não será obra apenas de nossas mãos.
Nosso retrato futuro resultará
da desencontrada multiplicação
dos sonhos que desatamos.

Imagem do dia

Dilma, mulher brasileira, futura presidente do Brasil.